Ler: Paixão Eterna

junho 17, 2010

Comentários Pretensiosos de Hamlet (1)

Como nossos blogs não são exatamente grandes hits da internet - o que pode ser visto, por que não?, certamente também como uma vantagem -, proponho que Prosa & Poesia, Humanidades em Destaque e Képos tou Matheté passem a desenvolver, na maior medida possível, um diálogo entre eles acerca de temáticas de nosso interesse comum. As bloggers Débora Aymoré e Fernanda Costa me digam, pelo orkut ou nos comentários a esta postagem, se concordam com essa proposta, que me deixaria bastante contente e realizada. Já dando o pontapé inicial desse projeto, escolhi falar de Hamlet, que sei que é uma peça do interesse de todas nós, especialmente da Fernanda, que vai escrever um trabalho de conclusão de curso que envolve paralelos entre esta tragédia shakespeareana e seu protótipo clássico, a Oresteia, de Ésquilo (o mote desse trabalho da Fernanda também exercerá certa influência no tipo de abordagem que farei de certos elementos e passagens da peça, como se verá facilmente no que segue).

Nessa postagem quero fazer o comentário da Cena I da peça. Para uma compreensão mais profunda do Hamlet, seriam também necessárias várias outras considerações relativas à tragédia em geral, à tragédia de vingança em especial, à situação da tragédia na Inglaterra, ao contexto de composição da obra, às fontes de inspiração do enredo, ao lugar da peça na biografia pessoal e literária de Shakespeare e aos detalhes de sua montagem nos palcos da época. Vou aqui simplesmente saltar por cima de tais considerações (podendo voltar a elas no futuro, claro), que poderiam ocupar várias postagens prévias, e mergulhar direto na história em si. Farei uso do original em inglês, usando minha própria tradução, que é, claro, inspirada por algumas traduções francesas e portuguesas que li e que pode sempre ser posta em questão por aqueles que quiserem comentar a postagem. Então, mãos à obra.

Cena I - primeira sequência

Elsinore. A platform before the Castle. (Elsinore. Uma plataforma na parte da frente do Castelo.)
(Enter two Sentinels -[first,] Francisco, [who paces up and down at his post; then] Bernardo, [who approaches him]. (Entram dois sentinelas, primeiro Francisco, que anda de um lado para o outro no seu posto; depois, Bernardo, que se aproxima dele.)

Bernardo— Who's there? (Quem está aí?)
Francisco— Nay, answer me. Stand and unfold yourself. (Não, responda você! Fique de pé e revele-se a mim.)
Bernardo— Long live the King! (Longa vida ao Rei!)
Francisco— Bernardo? (Bernardo?)
Bernardo— He. (Ele mesmo.)
Francisco— You come most carefully upon your hour (Você chegou bem na hora.)
Bernardo— 'Tis now struck twelve. Get thee to bed, Francisco. (Já é meia-noite. Vá pra cama, Francisco.)
Francisco— For this relief much thanks. 'Tis bitter cold, and I am sick at heart. (Muito obrigado por essa rendição. Está muito frio, e eu estou me sentindo mal.)
Bernardo— Have you had quiet guard? (Você teve uma guarda tranquila?)
Francisco— Not a mouse stirring. (Nem um rato sequer se mexendo.)
Bernardo— Well, good night. If you do meet Horatio and Marcellus, the rivals of my watch,
bid them make haste. (Bem, boa noite. Se você encontrar Horatio e Marcellus, meus companheiros de guarda, mande-os se apressarem.)

Comentários:

1. Elsinore (em dinamarquês, Helsingør) é uma cidade na ilha da Zelândia (em dinamarquês, Sjælland), no Leste da Dinamarca. Está no extremo oposto ao lado da fronteira com a Noruega, mas mesmo assim os guardas se demonstram assustados, preocupados a cada ruído com quem vem lá. O clima inicial é frio, sombrio, assustadiço, marcado por um mal-estar.

2. A escolha por começar por uma cena de conversa entre sentinelas faz uma paralelo e um contraste com o início da Oresteia. A sentinela da cena inicial do Agamênon sabe de tudo que se passa no palácio do Rei, está à espera de notícias do fim de um conflito, está ansioso pela iminente chegada do Rei e não quer que ninguém descubra aquilo que ele sabe. As sentinelas de Hamlet nada sabem das intrigas palacianas, estão preocupadas com o início de um possível confronto, estão comovidas pela recente partida (morte) do Rei e querem que alguém (Hamlet) revele aquilo que eles não sabem (de que se trata e o que deseja o fantasma).

3. A referência à troca de guarda é uma referência à transição do trono. Aquele que está de guarda está cansado e à espera de seu substituto, como um Rei que já estivesse velho. Aquele que chega está bem disposto e lhe diz "Vai pra cama", como um príncipe que dá ao Rei o alívio de saber que, tendo um substituto adequado, pode morrer tranquilo. A troca da guarda é uma referência à transição entre pai e filho, entre Rei e príncipe, que marca toda a peça, devido à questão de Hamlet, e que tem também paralelo na transição do trono da Noruega.

4. Francisco tinha tido uma guarda tranquila, mas estava com frio e se sentindo mal. A referência é a uma falsa aparência de tranquilidade na transição do trono da Dinamarca, que se deu de modo pacífico, mas que produzia no entorno certo mal-estar: Como havia morrido o Rei? Por que a rainha se casara logo depois com o ex-cunhado? Por que o irmão do Rei havia assumido o trono, em lugar do príncipe? Como o príncipe reagiria a isso? (Sempre interessante notar a ironia de guardas dizendo "Longa vida ao Rei!" num contexto em que sua morte está ainda recente.)

5. Bernardo está ali bem na hora da guarda, mas Marcellus e Horatio estão atrasados. Bernardo pede a Francisco que os mande se apressarem. A referência é à relação entre Claudius, que já assumiu o trono, e Hamlet, que ainda está para chegar da Inglaterra. Isso explica o uso feito por Shakespeare do termo "rivals", em vez de "companions", para se referir aos que vão fazer guarda juntos. É que "rival" pode ser interpretado também como "rival, adversário", que é a situação de Hamlet em relação a Claudius.

7 comentários:

Débora Aymoré disse...

Olá, Linda. Desde já peço que não fique frustrada com a ausência de comentários. Ontem estive em uma ocasião social e, além disso, tenho problemas de acessar a internet quando estou em Belém. Desculpe a demora. Quanto a sua postagem, fiquei imaginando com base em que fontes você traçou o paralelo entre a situação dos dois soldados e a situação da transição do trono entre o rei que havia sido assassinado e Hamlet. Que o soldados pareciam assustados pelos acontecimentos recentes em relação ao trono, isso eu consigo compreender, mas não os pontos seguintes. Sei que é um comentário amplo, mas apreciaria muito um detalhamento melhor da fundamentação, se não for pedir muito. Obrigada.

Linda Cavalcanti Lobato disse...

Não é muito claro o que você quer dizer com "fundamentação", amiga. Você quer saber se li em algum intérprete de Hamlet as afirmações que fiz sobre o sentido simbólico da toca da guarda e do comportamento dos soldados? Bom, sim, eu poderia apontar algumas fontes que dizem isso (Burton Raffel, Cyrus Hoy, Terri Mategrano, para citar só três) mas acho que, melhor que apresentar autoridades que escorem minha tese, é mostrar que ela de fato faz sentido. Se nos perguntamos, como pede toda hermenêutica literária contemporânea, "Que sentido faz que seja assim?" e "O que a peça quer com isso?", somos conduzidos a essas considerações. Por que começar a peça por uma troca de guarda? Por que mostrar que o guarda tinha um mal-estar? Por que alguns guardas chegam apenas depois? Se estivéssemos falando de fatos reais, diríamos que são apenas coincidências, nada demais. Mas, falando de ficção, valem as regras: "Em princípio, tudo é intencional" e "Se o casual se torna intencional mediante interpretação, então fica com o sentido que o torna mais rico". Mas nem tudo é reprodução de interpretações já feitas que li alguma vez. Algumas coisas dos meus comentários são ilações pessoais mesmo, a minha leitura da peça a partir dessas orientações metódicas.

Débora Aymoré disse...

Entendi. Não era para chatear você com a questão das fontes. Apenas queria entender melhor. Talvez tenha antecipado a minha pergunda, pois dependendo do raciocínio que você construir essa primeira parte pode ganhar sentido com o restante das considerações. Em todo o caso, aproveitando o seu comentário, fiquei em dúvida se a construção do intérprete, no caso da literatura, é ela mesma tão ficcional quanto a narrativa que é objeto de análise. Obrigada.

Fernanda disse...

Oi Linda! Desuclpe a demora, já deveria ter postado aqui há tempos.
Em primeiro lugar, obrigado pelos comentários e referências ao meu blog (tadinho, meio abandonado, mas estou começando a cuidar disso). Em segundo, eu gostei de sua proposta, mas atualmente tenho um roteiro de postagens que devo seguir. A princípio terei que vencer este roteiro, mas pretendo acompanhar ambos os blogs (seu e da Deb) e comentar sempre, e com mais eficiência. E se puder iniciar postagens dentro de sua idéia!

Obrigada pela posatgem, dela também pude já guardar algumas boas referências que podem ajudar em meu trabalho.
Como conheço pouco de Hamlet, e a Deb já fez a pergunta que me veio a mente (está ai em cima \\o/)eu farei outra, meio fora do contexto da postagem (muito boa, eu gostei muito, por sinal).

Existe neste trecho alguma referência que possa ser comparada à The Spanish Tragedy, de Thomas Kid? Esta é uma peça que conheço ainda menos que Hamlet, mas que no entanto parece ser estudo necessário para a compreensão dessa tragédia de Shakespeare.

Linda Cavalcanti Lobato disse...

Débora, sua dúvida sobre "se a construção do intérprete, no caso da literatura, é ela mesma tão ficcional quanto a narrativa que é objeto de análise" me deixou confusa, especialmente quanto ao sentido atribuído a "ficcional". Voce quis dizer "construído"? "hipotético"? "falso"? "narrativo"? Qual desses sentidos de ficcional exatamente?

Linda Cavalcanti Lobato disse...

Fernanda, as relações entre a tragédia de Kyd e a tragédia de Shakespeare são complexas. Talvez aqui possamos apontar a existência de um fantasma que demanda vingança (o oficial espanhol Don Andrea, no caso de The Spanish Tragedy, e o Rei dinamarquês Hamlet, no caso do Hamlet) como uma semelhança relevante entre as duas tragédias. Mas a maior parte das outras semelhanças (o papel da vingança, a dúvida sobre sua justiça, o papel de Horácio numa peça e na outra, a rivalidade entre países vizinhos, a peça dentro da peça, para descobrir o assassino etc.) vão se mostrar mesmo no restante do enredo, e não agora já no início.

Fernanda disse...

Ok, compreendi =3
Obrigada pela resposta!