Ler: Paixão Eterna

novembro 22, 2010

Analisando um Quadro: "Impression: Soleil Levant"


O quadro acima foi pintado pelo mais célebre pintor impressionista, o francês Claude Monet (1840-1926), em 1872, sendo considerado, com toda justiça, uma das obras primas do artista e do movimento e o responsável, em grande parte, pela popularização do nome "impressionismo", bem como das características da pintura impressionista. Vou tentar fazer aqui a minha modesta contribuição para a popularização do conhecimento básico acerca dos elementos e detalhes que tornam essa obra tão genial e admirável.

Tipo de Quadro: Óleo sobre tela.

Localização: Museu Marmottan, em Paris.

Tema

O objeto retratado é uma cena do nascer do sol no porto de Le Havre, na França, tendo, em primeiro plano, um pequeno barco que se desloca nas águas do Rio Sena, em segundo plano, o estaleiro do porto, onde se veem outros barcos e algumas chaminés e, em terceiro plano, o céu iluminado pelo Sol de aurora. Esse tema foi escolhido porque Monet percebeu que o deslocamento das águas, o reflexo da luz solar no espelho do Sena e as imagens turvas próprias da passagem da escuridão para a luz criavam o motivo perfeito para a utilização da técnica, que Monet vinha aperfeiçoando, de mistura das cores sobre a tela e de sobreposição de tons criando o efeito de distorção e movimento.

Técnica

Como a obra inteira prima pela originalidade na técnica de pintura empregada, vou me limitar a comentar apenas alguns aspectos técnicos mais importantes.

Algumas são características gerais da pintura impressionista. Os desenhos não têm contornos, porque há um deslocamento de foco visual do desenho para as cores: Em vez de desenhos preenchidos com cores, têm-se cores justapostas que formam, apenas para o olho humano, um desenho.

A relação de contraste entre desenho e cor e entre tom claro e tom escuro, que dominava a pintura tradicional, é substituída pela relação entre cores e tons complementares, de modo que o tipo e a intensidade de contraste dirige o olhar para a perspectiva que o pintor quer obter.

Além disso, Monet não usa cores previamente obtidas pela mistura de tons na palheta (a chamada mistura técnica), mas sim os sobrepõe na tela, deixando para o olho a tarefa de misturá-las (mistura ótica).

Uma estratégia interessante é que, como Monet havia deixado o Sol em terceiro plano e muito próximo do meio da pintura, ele teria dificuldade de fazê-lo desempenhar o papel de fonte a partir da qual toda a cena fosse iluminada, mas contorna essa dificuldade servindo-se do efeito reflexo sobre o céu e sobre a água para criar uma iluminação clara que vem de cima e uma iluminação escura que vem de baixo, num belíssimo lance de criatividade.

Outra bela sacada é o uso de tonalidades muito próximas para mostrar a visão dos barcos e chaminés do estaleiro à luz da aurora e a imagem dos mesmos barcos e chaminés refletida na água, literalmente "mostrando" uma metáfora, como se dissesse "a visão dos objetos à luz da aurora os faz parecerem imagens de si mesmos refletidas na água".

Também o recurso de representar a figura humana apenas por uma silhueta insinuada entre as sombras mostra a intenção de não diferenciar entre homem e natureza, entre criação e construção. Isso aproxima a visão da manhã com a visão da infância, uma espécie de olhar ingênuo ou inocente que mantém as coisas indiferenciadas e dissolve todo conflito na bela unidade da contemplação, como se Monet dissesse que a visão que é capaz de perceber a verdadeira unidade das coisas é a visão dos inícios, ali quando as luzes não estão ainda totalmente acesas, ali onde a aurora ainda não é dia e nenhum dos vícios e das diferenças veio ainda à tona.

Se é verdade que esse momento dura apenas um isntante antes de perder-se, é verdade também que cada novo nascer do Sol é uma nova oportunidade de vivê-lo e de entesourá-lo na memória. É um dos motivos pelos quais sou tão apaixonada por esse quadro.

Por enquanto é só. Há muito mais para dizer sobre essa obra-prima, mas por ora será apenas essa a minha contribuição, reinaugurando o blog depois de tanto tempo sem vir por aqui. Espero que tenham gostado e que se sintam agora um pouco mais tendentes que antes a admirarem esse belo quadro de Claude Monet.

julho 28, 2010

Comentários Pretensiosos de Hamlet (3)

Dando continuidade a meus comentários, comento agora a primeira tentativa de contato entre os guardas e o fantasma do Rei Hamlet.

Marcellus
Peace, break thee off; look, where it comes again! (Espere, faça silêncio! Veja como ele vem de novo!)
Bernardo
In the same figure, like the king that's dead. (Com a mesma aparência, como o Rei morreu.)
Marcellus
Thou art a scholar; speak to it, Horatio. (Você é um homem culto; fale com ele, Horácio.)
Bernardo
Looks it not like the king? mark it, Horatio. (Não se parece com o Rei? Note, Horácio.)
Horatio
Most like: it harrows me with fear and wonder. (Bastante: perturba-me com medo e maravilhamento.)
Bernardo
It would be spoke to. (É preciso falar com ele.)
Marcellus
Question it, Horatio. (Interrogue-o, Horácio.)
Horatio
What art thou that usurp'st this time of night, (O que és tu, que usurpas essa hora da noite,)
Together with that fair and warlike form (bem como essa forma elegante e guerreira)
In which the majesty of buried Denmark (em que a majestade do enterrado Rei da Dinamarca)
Did sometimes march? by heaven I charge thee, speak! (algumas vezes marchava? Pelo Céu eu te ordeno, fala!)
Marcellus
It is offended. (Ele se ofendeu.)
Bernardo
See, it stalks away! (Estão vendo, ele está indo embora!)
Horatio
Stay! speak, speak! I charge thee, speak! (Fica! Fala, fala! Eu te ordeno, fala!)
Exit Ghost (Sai o fantasma)
Marcellus
'Tis gone, and will not answer. (Ele se foi e não responderá.)
Bernardo
How now, Horatio! you tremble and look pale: (E agora, Horácio! Você está trêmulo e parece pálido:)
Is not this something more than fantasy? (Não é isso mais que imaginação?)
What think you on't? (O que você acha disso?)
Horatio
Before my God, I might not this believe (Diante de meu Deus, eu não poderia acreditar)
Without the sensible and true avouch (sem a sanção sensível e verdadeira)
Of mine own eyes. (de meus próprio olhos.)
Marcellus
Is it not like the king?! (Não se parece com o Rei?)
Horatio
As thou art to thyself: (Tal como tu te pareces contigo mesmo:)
Such was the very armour he had on (Tal era a própria armadura em que estava)
When he the ambitious Norway combated; (quando combateu o ambicioso Rei da Noruega)
So frown'd he once, when, in an angry parle, (Com a testa tão franzida quanto certa vez, numa altercação furiosa,)
He smote the sledded Polacks on the ice. (ele feriu os poloneses em trenós no gelo)
'Tis strange. (Isso é estranho)
Comentário:

1. Na primeira interpelação de Horácio ao fantasma, há um misto de temor ao desconhecido, arrogância perante uma entidade do além que deveria responder às suas palavras autorizadas, encenação de autoridade perante os guardas menos instuídos etc. E ali se desenha uma rede de hierarquias: Horácio, como homem letrado, está acima dos guardas, sendo a pessoa indicada para abordar o fantasma; Horácio, enquanto vivo, está acima do fantasma, podendo fazer-lhe exigências; mas o fantasma, enquanto Rei, está acima de todos eles, não querendo falar com tais pessoas menos graduadas. É esse jogo de hierarquias que levará à necessidade de buscar alguém que fosse ao mesmo tempo letrado e nobre, donde a ideia, que surgirá em breve, de trazer Hamlet para falar com o fantasma que se parece com seu pai.

2. Enquanto Horácio e os guardas falam entre si tratando-se como "you" (à exceção do pedido para Horácio falar com o fantasma, que já faz parte de uma linguagem ritual), Horácio fala ao fantasma tratando-o como "thou". Isso seria como, em português, transitar do "você" para o "vós". É a transição para uma linguagem formal e antiquada, típica do inglês medieval e das versões inglesas da Bíblia, principalmente a Bíblia de St. James. Era também a linguagem utilizada em exconjuros e exorcismos, além de ser muito comum nos interrogatórios públicos da Inquisition. Horácio, como homem culto, não cria em fantasma, nunca vira um, muito menos o interpelara antes. Aqui o scholar está certamente imitando a linguagem de padres e feiticeiros de que já ouvira falar por meio de histórias populares. Shakespeare tinha sabidamente grande desprezo por toda essa gente e reputava como superstição a crença em seus saberes e poderes sobre as coisas do outro mundo. Aqui o Bardo volta a mostrar, como em outras peças, que, se existe um mundo dos mortos e um sobrenatural, ele não se conforma às nossas tolas expectativas nem se dobra às nossas caprichosas vontades.

3. Duas vezes Horácio usa a expressão "I charge thee", que é uma fórmula inglesa medieval para "Eu te ordeno", "Eu te exijo". A expressão é muito conhecida por ser a tradução para o inglês medieval do grego "tha sas chreosoun" e do latim "ego te exconiuro", que se encontram frequentemente no Novo Testamento, sobretudo nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas paulinas. Embora Horácio a tenha empregado provavelmente por simples imitação dos exconjuradores e exorcistas, ela indica não apenas que Horácio pensa ter autoridade sobre o fantasma, mas também que, a despeito da aparência com que a visagem se mostra, Horácio não julga que se trate verdadeiramente do Rei Hamlet. Volto a esse ponto nos comentários seguintes.

4. As expressões "figure" e "look like" são sempre usadas para fazer referência à semelhança do fantasma com o Rei Hamlet. Aqui a justificativa se encontra nas crenças medievais. Demônios, feiticeiros ou entidades da floresta podem assumir a aparência de seres humanos, inclusive daqueles que já morreram, para enganar os humanos. Assim, convém desconfiar da aparência com que supostos fantasmas se apresentam. Além disso, fantasmas de pessoas mortas são almas penadas, presas a um limbo entre o aquém e o além devido a culpas (próprias ou alheias) não expiadas e a negócios irresolutos. Como se sabe que tinha sido digna e virtuosa a vida do Rei Hamlet e se acredita que foi natural a sua morte, não há razões para crer que seu fantasma estaria ainda preso e vagando por entre os mundos.

5. O fantasma se apresenta vestido com a armadura com que o Rei Hamlet lutou contra o Rei da Noruega. Isso pode querer dizer ou que ele, em conformidade com as crenças medievais, tomou a forma da época e da situação com que mais se identifica depois de morto, ou que ele está vestido para a guerra porque se entende em pleno conflito com o irmão, que, à semelhança do monarca norueguês, também é "ambitious" e quer se apossar de seu trono. O cenho fechado, com a testa franzida, pode se dever à ofensiva interpelação de Horácio, à demora de chamarem por Hamlet ou ao ódio acumulado pela traição de que foi vítima em sua morte. Minha aposta é de que tanto a armadura quanto à expressão facial se devem à mesma coisa: O fantasma se entende numa guerra contra aqueles que o mataram.

Sobre os Comentários

Amigas Débora Aymoré, do Blog Humanidades em Destaque, e Fernanda Borges da Costa, do Blog Képos tou Matheté, vocês me deixaram muito feliz com seus comentários às minhas postagens anteriores. Apenas gostaria que vocês me confirmassem se vão poder ou não fazer postagens sobre Hamlet em seus respectivos espaços virtuais.

junho 19, 2010

Comentários Pretensiosos de Hamlet (2)

Mesmo confessadamente frustrada com a falta de resposta de minhas interlocutoras explicitamente mencionadas na postagem anterior, darei hoje continuidade à proposta destes comentários à tragédia shakespeareana. Seguimos ainda na primeira cena, após o diálogo entre Bernardo e Francisco, na troca da guarda do depósito de armas do castelo de Elsinore. Como de vez anterior, primeiro o texto original, acompanhado de tradução minha, e depois os comentários.

TEXTO

(Enter Horatio and Marcellus). (Entram Horatio e Marcellus)

Francisco— I think I hear them. Stand, ho! Who is there? (Acho que os ouço. Parado aí! Quem está aí?)
Horatio— Friends to this ground. (Amigos desta terra.)
Marcellus— And liegemen to the Dane. (E homens leais ao Rei da Dinamarca.)
Francisco— Give you good night. (Dou-lhes boa noite.)
Marcellus— O, farewell, honest soldier. who hath reliev'd you? (Ah, até mais, bom soldado! Quem o rendeu?)
Francisco— Bernardo hath my place. Give you good night. (Bernardo está no meu lugar. Dou-lhes boa noite.)

(Exit). (Sai)

Marcellus— Holla, Bernardo! (Olá, Bernardo!)
Bernardo— Say what, is Horatio there? (Vejam só, é Horatio aí?)
Horatio— A piece of him. (Uma parte dele.)
Bernardo— Welcome, Horatio. Welcome, good Marcellus. (Benvindo, Horatio. Benvindo, bom Marcellus.)
Marcellus— What, has this thing appear'd again to-night? (Diga, aquela coisa apareceu de novo essa noite?)
Bernardo— I have seen nothing. (Não vi nada)
Marcellus— Horatio says 'tis but our fantasy, and will not let belief take hold of him, touching this dreaded sight, twice seen of us. Therefore I have entreated him along, with us to watch the minutes of this night, that, if again this apparition come, he may approve our eyes and speak to it. (Horatio diz que é apenas nossa imaginação e que não vai se deixar crer nessas coisas, quanto a essa visão assustadora, visto duas vezes por nós. Por isso, pedi-lhe que viesse junto, para conosco observar os minutos desta noite, pois, se a aparição vier novamente, ele poderá acreditar no que vimos e falar com ela.)
Horatio— Tush, tush, 'twill not appear. (Ora, ora, ela não vai aparecer.)
Bernardo— Sit down awhile, and let us once again assail your ears, that are so fortified against our story, what we two nights have seen. (Sente-se um pouco e deixe-nos novamente assaltar seus ouvidos, que estão tão protegidos contra nossa história, com o que vimos duas noites.)
Horatio— Well, sit we down, and let us hear Bernardo speak of this. (Bem, vamos sentar e ouvir Bernardo falar disso.)
Bernardo— Last night of all, when yond same star that's westward from the pole had made his course t' illume that part of heaven where now it burns, Marcellus and myself, the bell then beating one- (Noite passada, quando aquela mesma estrela que está a Oeste de Polaris tinha feito seu curso para iluminar essa parte do Paraíso em que agora ela queima, Marcellus e eu, quando o sino tocava uma-)

(Enters Ghost) (Entra o fantasma)

COMENTÁRIO

1. No brevíssimo encontro entre Francisco e os dois que chegam, aquele parece assustado e apressado. Pergunta quem vem lá e é acalmado pela resposta dos dois. Depois, responde de modo lacônico e impaciente e quer o mais rápido possível ir para casa e afastar-se dali. Pode ser por causa do cansaço e do mal-estar que acusara no primeiro diálogo, mas, mais provavelmente, se trata do medo do fantasma. Segundo a crença medieval, a hora em que os fantasmas saem para assustar os vivos é à meia-noite, exatamente o marco final da guarda de Francisco. Por isso ele se alegra que Bernardo tenha chegado no horário. Por isso ele não espera, como seria de praxe, que cheguem os outros e deixa Bernardo sozinho no posto. Por isso, também, ele não quer perder tempo em conversar com Marcellus e Horatio, a ponto de nem transmitir-lhes o recado de Bernardo para que se apressassem. Francisco tenta a todo custo se evadir da cena das aparições e representa a atitude de negação e de fuga, uma das que depois se verão atuantes na complexa e vacilante personalidade do príncipe Hamlet.

2. Em seguida ocorre o encontro de Marcellus e Horatio com Bernardo. Ali se desenha o jogo de relações entre eles. Marcellus e Bernardo viram o fantasma já por duas noites, estão assustados com ele (referem-se a ele como uma visão assustadora, dreaded sight), mas ao mesmo tempo intrigados quanto ao que ele é e o que quer. Por isso Marcellus traz Horatio (a scholar, ou seja, alguém com estudos avançados em latim, capaz de interpelar a alma penada na única língua nobre a que os mortos supostamente respondem) para o local. Os guardas responsáveis pelo turno da madrugada querem livrar-se da assombração, mas, além de terem medo, são incultos e só falam a língua bárbara do inglês. A crença de que os mortos respondem apenas ao latim era muito difundida na época de Shakespeare. Contudo, o Bardo aqui se vale dessa crendice para introduzir na história o elemento da reflexão. Junto com os estudos de latim, Horatio introduz na cena o pensamento racional, questionador, cético, suspeitador. Marcellus trazendo Horatio para ver o fantasma e falar com ele é o homem medieval recorrendo ao homem moderno para fazê-lo crer em suas superstições e servir-se de seus conhecimentos para exorcizá-las, mas tendo-as, em vez disso, questionadas e examinadas criticamente. Um conflito que, mais tarde, se repetirá na alma de Hamlet. Sem dúvida, uma bela metáfora shakespeareana.

3. A história que Bernardo começa a contar - e que se vê interrompida pela aparição do fantasma - quebra o clima informal da conversa de até então. Quando vai contar o que ele e Marcellus viram nas noites anteriores, Bernardo não se limita a dizer: "Ontem à noite, por volta de uma da manhã, vimos o que parecia ser o fantasma de um homem". Ele introduz uma linguagem pomposa e floreada, recorre a topoi narrativos das lendas medievais e tenta criar um clima de magia e mistério. Aqui está representada a mentalidade medieval, que sente certo prazer na alimentação de suas crenças e lendas de medo e mistério. Além disso, o homem medieval se sente de algum modo prestigiado pelas forças invisíveis por ter sido testemunho de um evento fantástico, que depois poderá relatar aos outros, para seu temor, mas também inveja. Horatio, no entanto, disse que não se deixaria levar por essas crendices, que a tal aparição era produto apenas da imaginação dos simplórios soldados, que o fantasma que tanto temiam não ia, na verdade, aparecer de modo algum. Horatio se anuncia como racional e cético e desafia a crença e a honra dos dois soldados. Por isso Bernardo recorre ao linguajar enigmático e fabuloso do legendário medieval, para reintroduzir a grandiosidade cabalística da experiência que tiveram. Shakespeare, contudo, se limita a acenar com essa história, sem deixá-la concluir-se. Ao fazer isso, por um lado, diz: "Bom, todos conhecemos uma porção dessas histórias, então o resto vocês já podem imaginar" e, por outro, mostra que, quando o evento misterioso do qual se fala é real, o fato em si dispensa todo o palavrório e todo o floreio narrativo.

junho 17, 2010

Comentários Pretensiosos de Hamlet (1)

Como nossos blogs não são exatamente grandes hits da internet - o que pode ser visto, por que não?, certamente também como uma vantagem -, proponho que Prosa & Poesia, Humanidades em Destaque e Képos tou Matheté passem a desenvolver, na maior medida possível, um diálogo entre eles acerca de temáticas de nosso interesse comum. As bloggers Débora Aymoré e Fernanda Costa me digam, pelo orkut ou nos comentários a esta postagem, se concordam com essa proposta, que me deixaria bastante contente e realizada. Já dando o pontapé inicial desse projeto, escolhi falar de Hamlet, que sei que é uma peça do interesse de todas nós, especialmente da Fernanda, que vai escrever um trabalho de conclusão de curso que envolve paralelos entre esta tragédia shakespeareana e seu protótipo clássico, a Oresteia, de Ésquilo (o mote desse trabalho da Fernanda também exercerá certa influência no tipo de abordagem que farei de certos elementos e passagens da peça, como se verá facilmente no que segue).

Nessa postagem quero fazer o comentário da Cena I da peça. Para uma compreensão mais profunda do Hamlet, seriam também necessárias várias outras considerações relativas à tragédia em geral, à tragédia de vingança em especial, à situação da tragédia na Inglaterra, ao contexto de composição da obra, às fontes de inspiração do enredo, ao lugar da peça na biografia pessoal e literária de Shakespeare e aos detalhes de sua montagem nos palcos da época. Vou aqui simplesmente saltar por cima de tais considerações (podendo voltar a elas no futuro, claro), que poderiam ocupar várias postagens prévias, e mergulhar direto na história em si. Farei uso do original em inglês, usando minha própria tradução, que é, claro, inspirada por algumas traduções francesas e portuguesas que li e que pode sempre ser posta em questão por aqueles que quiserem comentar a postagem. Então, mãos à obra.

Cena I - primeira sequência

Elsinore. A platform before the Castle. (Elsinore. Uma plataforma na parte da frente do Castelo.)
(Enter two Sentinels -[first,] Francisco, [who paces up and down at his post; then] Bernardo, [who approaches him]. (Entram dois sentinelas, primeiro Francisco, que anda de um lado para o outro no seu posto; depois, Bernardo, que se aproxima dele.)

Bernardo— Who's there? (Quem está aí?)
Francisco— Nay, answer me. Stand and unfold yourself. (Não, responda você! Fique de pé e revele-se a mim.)
Bernardo— Long live the King! (Longa vida ao Rei!)
Francisco— Bernardo? (Bernardo?)
Bernardo— He. (Ele mesmo.)
Francisco— You come most carefully upon your hour (Você chegou bem na hora.)
Bernardo— 'Tis now struck twelve. Get thee to bed, Francisco. (Já é meia-noite. Vá pra cama, Francisco.)
Francisco— For this relief much thanks. 'Tis bitter cold, and I am sick at heart. (Muito obrigado por essa rendição. Está muito frio, e eu estou me sentindo mal.)
Bernardo— Have you had quiet guard? (Você teve uma guarda tranquila?)
Francisco— Not a mouse stirring. (Nem um rato sequer se mexendo.)
Bernardo— Well, good night. If you do meet Horatio and Marcellus, the rivals of my watch,
bid them make haste. (Bem, boa noite. Se você encontrar Horatio e Marcellus, meus companheiros de guarda, mande-os se apressarem.)

Comentários:

1. Elsinore (em dinamarquês, Helsingør) é uma cidade na ilha da Zelândia (em dinamarquês, Sjælland), no Leste da Dinamarca. Está no extremo oposto ao lado da fronteira com a Noruega, mas mesmo assim os guardas se demonstram assustados, preocupados a cada ruído com quem vem lá. O clima inicial é frio, sombrio, assustadiço, marcado por um mal-estar.

2. A escolha por começar por uma cena de conversa entre sentinelas faz uma paralelo e um contraste com o início da Oresteia. A sentinela da cena inicial do Agamênon sabe de tudo que se passa no palácio do Rei, está à espera de notícias do fim de um conflito, está ansioso pela iminente chegada do Rei e não quer que ninguém descubra aquilo que ele sabe. As sentinelas de Hamlet nada sabem das intrigas palacianas, estão preocupadas com o início de um possível confronto, estão comovidas pela recente partida (morte) do Rei e querem que alguém (Hamlet) revele aquilo que eles não sabem (de que se trata e o que deseja o fantasma).

3. A referência à troca de guarda é uma referência à transição do trono. Aquele que está de guarda está cansado e à espera de seu substituto, como um Rei que já estivesse velho. Aquele que chega está bem disposto e lhe diz "Vai pra cama", como um príncipe que dá ao Rei o alívio de saber que, tendo um substituto adequado, pode morrer tranquilo. A troca da guarda é uma referência à transição entre pai e filho, entre Rei e príncipe, que marca toda a peça, devido à questão de Hamlet, e que tem também paralelo na transição do trono da Noruega.

4. Francisco tinha tido uma guarda tranquila, mas estava com frio e se sentindo mal. A referência é a uma falsa aparência de tranquilidade na transição do trono da Dinamarca, que se deu de modo pacífico, mas que produzia no entorno certo mal-estar: Como havia morrido o Rei? Por que a rainha se casara logo depois com o ex-cunhado? Por que o irmão do Rei havia assumido o trono, em lugar do príncipe? Como o príncipe reagiria a isso? (Sempre interessante notar a ironia de guardas dizendo "Longa vida ao Rei!" num contexto em que sua morte está ainda recente.)

5. Bernardo está ali bem na hora da guarda, mas Marcellus e Horatio estão atrasados. Bernardo pede a Francisco que os mande se apressarem. A referência é à relação entre Claudius, que já assumiu o trono, e Hamlet, que ainda está para chegar da Inglaterra. Isso explica o uso feito por Shakespeare do termo "rivals", em vez de "companions", para se referir aos que vão fazer guarda juntos. É que "rival" pode ser interpretado também como "rival, adversário", que é a situação de Hamlet em relação a Claudius.

junho 12, 2010

A Propósito do Dia dos Namorados

Toda gente está muito enganada no que respeita ao amor. O amor não é essa coisa que quase todo mundo diz sentir. Um amor assim, que se oferecesse à experiência de qualquer um, que pudesse ser, de uma hora a outra, despertado por um impulso irracional, por uma manipulação midiática, por um suspiro adolescente, não seria nada que valesse a pena sequer ter, quanto mais cultivar. Não, isso não é o amor. O amor, se existe algum, é um prêmio que só se oferece às almas superiores, àquelas fortalecidas no sofrimento, purificadas no sacrifício, libertadas a pouco e pouco de todo narcisismo, de todo egoísmo, de todo apego a tudo que passa e se vai. O amor é seletivo. O amor, de verdade, é como o Graal, que todo mundo quer, muita gente busca, poucos fortes encontram e apenas uns puros alcançam. O amor de verdade não pertence a esse tempo de caixas de bombons, de aneis de compromisso e de beijos apaixonados nos finais felizes.O amor é de outra época, segue um outro código. Não é um produto, que a loja possa vender, que o comercial possa anunciar e que cada um possa consumir num dia datado no calendário. O amor de verdade não segue essa lógica. Não pode ser enlatado, plastificado, preservado na geladeira, guardado para ser consumido aos poucos, em frente da televisão. O amor verdadeiro é exigente. É um Eros divino que Psyche só reconquista depois de duras provas, feitas para testarem todos os seus limites. Essa civilização corrupta em que vivemos não pode ter um dia para celebrar um amor que ela sequer é capaz de compreender e que nunca será capaz de experimentar. Pelo contrário, ela celebra o não amor, celebra sua prisão emocional, seu ciclo vicioso de narcisismo e libido, celebra tudo que a impede de acessar qualquer vivência genuinamente amorosa. Esse é mais um ato da farsa de nosso tempo. Um dia para lojas de cartões, vendedores de bombons, para cinemas, teatros e restaurantes, para spas, motéis e lojas de conveniência, para drive-ins, portos, aeroportos e companhias telefônicas. Esse é um dia para tudo que aproxima tanto os corpos que já não pode proporcionar nenhuma proximidade verdadeira das almas. Um dia para os homens fingirem ter o romantismo que suas mulheres gostariam que eles tivessem, coisa que só fazem para obter, no fim da noite, a satisfação sexual que realmente lhes importa. Ah, como se o romantismo sonhador das novelas fosse em algum sentido melhor que a libido incontida da pornografia. Não é. Ambos são lados da mesma moeda podre do não amor. Uma é a expressão da carência de quem se dá tão pouco valor que precisa que outro cante seus encantos e a convença de que é, entre tantas, especialmente especial. A outra é a manifestação crua de uma apropriação insensível de tudo que é mundano e que já não pode mais estimar nenhum sujeito a não ser na sua condição de puro objeto e de puro meio. Esse é um dia feito para satisfazer ambas as partes, para começar no passeio e na troca de presentes que simula o romantismo de folhetim e terminar na cópula animalesca que satisfaz a libido impessoal. Esse é, por definição, o dia do funeral de toda possibilidade amorosa. O amor, lá do alto, nos observa e, com sua paciência e sabedoria divinas, se ri de nossas ridículas encenações de amor. Quando um resquício de afeto humano o comove, ele chora uma lágrima de dor e de piedade das almas que precisam desesperadamente de amor e que se tornaram irresistivelmente incapazes de amar. E o amor olha aos céus e implora ao relógio do tempo, ao calendário dos séculos, que chegue logo o dia em que ele, amor verdadeiro, possa estar de novo entre os homens, o dia em que nenhum dia especial será mais necessário, porque não haverá mais na terra essa civilização hipócrita que só celebra aquilo que ela mesma impede de existir e que carimba rótulos com nomes divinos às suas perversões monstruosas. Hoje eu me junto a ele, ao amor, nesse clamor aos deuses do tempo, para que acelerem suas ampulhetas e nos livrem desse tormento, mesmo que seja pela catástrofe final a que nossa falta de amor verdadeiro inevitavelmente nos levará.

junho 08, 2010