Ler: Paixão Eterna

julho 28, 2010

Comentários Pretensiosos de Hamlet (3)

Dando continuidade a meus comentários, comento agora a primeira tentativa de contato entre os guardas e o fantasma do Rei Hamlet.

Marcellus
Peace, break thee off; look, where it comes again! (Espere, faça silêncio! Veja como ele vem de novo!)
Bernardo
In the same figure, like the king that's dead. (Com a mesma aparência, como o Rei morreu.)
Marcellus
Thou art a scholar; speak to it, Horatio. (Você é um homem culto; fale com ele, Horácio.)
Bernardo
Looks it not like the king? mark it, Horatio. (Não se parece com o Rei? Note, Horácio.)
Horatio
Most like: it harrows me with fear and wonder. (Bastante: perturba-me com medo e maravilhamento.)
Bernardo
It would be spoke to. (É preciso falar com ele.)
Marcellus
Question it, Horatio. (Interrogue-o, Horácio.)
Horatio
What art thou that usurp'st this time of night, (O que és tu, que usurpas essa hora da noite,)
Together with that fair and warlike form (bem como essa forma elegante e guerreira)
In which the majesty of buried Denmark (em que a majestade do enterrado Rei da Dinamarca)
Did sometimes march? by heaven I charge thee, speak! (algumas vezes marchava? Pelo Céu eu te ordeno, fala!)
Marcellus
It is offended. (Ele se ofendeu.)
Bernardo
See, it stalks away! (Estão vendo, ele está indo embora!)
Horatio
Stay! speak, speak! I charge thee, speak! (Fica! Fala, fala! Eu te ordeno, fala!)
Exit Ghost (Sai o fantasma)
Marcellus
'Tis gone, and will not answer. (Ele se foi e não responderá.)
Bernardo
How now, Horatio! you tremble and look pale: (E agora, Horácio! Você está trêmulo e parece pálido:)
Is not this something more than fantasy? (Não é isso mais que imaginação?)
What think you on't? (O que você acha disso?)
Horatio
Before my God, I might not this believe (Diante de meu Deus, eu não poderia acreditar)
Without the sensible and true avouch (sem a sanção sensível e verdadeira)
Of mine own eyes. (de meus próprio olhos.)
Marcellus
Is it not like the king?! (Não se parece com o Rei?)
Horatio
As thou art to thyself: (Tal como tu te pareces contigo mesmo:)
Such was the very armour he had on (Tal era a própria armadura em que estava)
When he the ambitious Norway combated; (quando combateu o ambicioso Rei da Noruega)
So frown'd he once, when, in an angry parle, (Com a testa tão franzida quanto certa vez, numa altercação furiosa,)
He smote the sledded Polacks on the ice. (ele feriu os poloneses em trenós no gelo)
'Tis strange. (Isso é estranho)
Comentário:

1. Na primeira interpelação de Horácio ao fantasma, há um misto de temor ao desconhecido, arrogância perante uma entidade do além que deveria responder às suas palavras autorizadas, encenação de autoridade perante os guardas menos instuídos etc. E ali se desenha uma rede de hierarquias: Horácio, como homem letrado, está acima dos guardas, sendo a pessoa indicada para abordar o fantasma; Horácio, enquanto vivo, está acima do fantasma, podendo fazer-lhe exigências; mas o fantasma, enquanto Rei, está acima de todos eles, não querendo falar com tais pessoas menos graduadas. É esse jogo de hierarquias que levará à necessidade de buscar alguém que fosse ao mesmo tempo letrado e nobre, donde a ideia, que surgirá em breve, de trazer Hamlet para falar com o fantasma que se parece com seu pai.

2. Enquanto Horácio e os guardas falam entre si tratando-se como "you" (à exceção do pedido para Horácio falar com o fantasma, que já faz parte de uma linguagem ritual), Horácio fala ao fantasma tratando-o como "thou". Isso seria como, em português, transitar do "você" para o "vós". É a transição para uma linguagem formal e antiquada, típica do inglês medieval e das versões inglesas da Bíblia, principalmente a Bíblia de St. James. Era também a linguagem utilizada em exconjuros e exorcismos, além de ser muito comum nos interrogatórios públicos da Inquisition. Horácio, como homem culto, não cria em fantasma, nunca vira um, muito menos o interpelara antes. Aqui o scholar está certamente imitando a linguagem de padres e feiticeiros de que já ouvira falar por meio de histórias populares. Shakespeare tinha sabidamente grande desprezo por toda essa gente e reputava como superstição a crença em seus saberes e poderes sobre as coisas do outro mundo. Aqui o Bardo volta a mostrar, como em outras peças, que, se existe um mundo dos mortos e um sobrenatural, ele não se conforma às nossas tolas expectativas nem se dobra às nossas caprichosas vontades.

3. Duas vezes Horácio usa a expressão "I charge thee", que é uma fórmula inglesa medieval para "Eu te ordeno", "Eu te exijo". A expressão é muito conhecida por ser a tradução para o inglês medieval do grego "tha sas chreosoun" e do latim "ego te exconiuro", que se encontram frequentemente no Novo Testamento, sobretudo nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas paulinas. Embora Horácio a tenha empregado provavelmente por simples imitação dos exconjuradores e exorcistas, ela indica não apenas que Horácio pensa ter autoridade sobre o fantasma, mas também que, a despeito da aparência com que a visagem se mostra, Horácio não julga que se trate verdadeiramente do Rei Hamlet. Volto a esse ponto nos comentários seguintes.

4. As expressões "figure" e "look like" são sempre usadas para fazer referência à semelhança do fantasma com o Rei Hamlet. Aqui a justificativa se encontra nas crenças medievais. Demônios, feiticeiros ou entidades da floresta podem assumir a aparência de seres humanos, inclusive daqueles que já morreram, para enganar os humanos. Assim, convém desconfiar da aparência com que supostos fantasmas se apresentam. Além disso, fantasmas de pessoas mortas são almas penadas, presas a um limbo entre o aquém e o além devido a culpas (próprias ou alheias) não expiadas e a negócios irresolutos. Como se sabe que tinha sido digna e virtuosa a vida do Rei Hamlet e se acredita que foi natural a sua morte, não há razões para crer que seu fantasma estaria ainda preso e vagando por entre os mundos.

5. O fantasma se apresenta vestido com a armadura com que o Rei Hamlet lutou contra o Rei da Noruega. Isso pode querer dizer ou que ele, em conformidade com as crenças medievais, tomou a forma da época e da situação com que mais se identifica depois de morto, ou que ele está vestido para a guerra porque se entende em pleno conflito com o irmão, que, à semelhança do monarca norueguês, também é "ambitious" e quer se apossar de seu trono. O cenho fechado, com a testa franzida, pode se dever à ofensiva interpelação de Horácio, à demora de chamarem por Hamlet ou ao ódio acumulado pela traição de que foi vítima em sua morte. Minha aposta é de que tanto a armadura quanto à expressão facial se devem à mesma coisa: O fantasma se entende numa guerra contra aqueles que o mataram.

Sobre os Comentários

Amigas Débora Aymoré, do Blog Humanidades em Destaque, e Fernanda Borges da Costa, do Blog Képos tou Matheté, vocês me deixaram muito feliz com seus comentários às minhas postagens anteriores. Apenas gostaria que vocês me confirmassem se vão poder ou não fazer postagens sobre Hamlet em seus respectivos espaços virtuais.