As modernas sociedades industriais e urbanizadas substituiram aos poucos as diversões literárias aristocráticas por diversões não literárias burguesas. Até o Séc. XVIII, uma das diversões mais freqüentes e animadas das classes ricas eram os saraus literários. Ali se reuniam os membros de famílias ilustres e os detentores de cargos de governo ou títulos de nobreza, com o propósito de ler em voz alta as poesias mais recentes e comentar os romances da época. Uma vasta cultura literária era item básico de boa educação, e interessar-se pelas novas obras e autores rendia a homens e mulheres uma reputação de refinamento.
Após as Revoluções Burguesas, os saraus caíram em desuso. Identificadas com o ócio e a ostentação da nobreza parasitária, essas sessões literárias se tornaram um hábito preservado em segredo por poucas famílias de origem nobiliárquica. Os novos ricos, provindos das classes populares e carentes da educação refinada, impunham uma nova escala de valores em que o trabalho e a riqueza valiam mais que a cultura e a sofisticação, uma escala de valores em que a ignorância e rudeza eram subitamente alçadas à condição de virtudes. A Literatura passou a ser considerada uma atividade supérflua e efeminada, reservada apenas aos apaixonados e às mulheres, que tinham disposição e tempo disponível para estas coisas. Para os homens, donos de negócios, industriais, banqueiros e comerciantes, contudo, confessar-se desconhecedor de Shakespeare e de Goethe era ao mesmo tempo um sinal de ausência de afetação e de tino para as coisas úteis e produtivas.
Essa atmosfera antiliterária do Séc. XIX criou o cenário apropriado para a maior tragédia da cultura contemporânea, que foi a substituição da arte pelo entretenimento. O paradima das horas de lazer não eram mais os saraus e bailes, mas sim as festas e jantares. As músicas passaram a ser compostas com vista à animação das danças e as comédias eram encenadas para fazer rir. Em vez da elevação do espírito e do refinamento dos gostos, o que se buscava agora era a excitação e o entorpecimento dos sentidos. Tudo muito de acordo com o esvaziamento da concepção de ethos nobre e com a substituição da noção de felicidade como virtude pela de felicidade como prazer.
Essa nova ordem da cultura, esse aburguesamento dos costumes, chegou ao seu apogeu quando os novos meios de comunicação de massa, o cinema e a televisão, trocaram o texto pela imagem e implantaram a ditadura do imediato. Agora nada era real se não fosse visto e tudo que fosse visto era real. A avalanche de imagens atrofiava a imaginação, a explosão de cores e sons insensibilizava os sentidos. Aos poucos os espectadores se tornaram consumidores passivos de uma dramaturgia popular de baixa qualidade e nenhuma profundidade. À medida que os filmes de cinema e os programas de TV queriam audiência em quantidade, e não excelência em qualidade, se tornaram cada vez mais espelhos dos preconceitos, dos sonhos e dos medos do público, uma espécie de versão materializada do imaginário coletivo. O público não era incomodado, desafiado, convidado à reflexão ou à crítica; era, sim, adulado e lisonjeado em suas crenças e vontades.
Anunciava-se a morte iminente da leitura, a aposentadoria inevitável da escrita. Parecia questão de tempo até que os museus e os livros de história se tornassem os locais adequados para as obras literárias. No entanto, as letras resistiram, sobreviveram à cultura de massa e seguiram encantando e deleitando um público seleto, pequeno, fiel. É verdade que a literatura ganhou a companhia da indústria editorial, dessa fábrica de "best sellers" e de autores da moda, livros capazes de cativar multidões não porque fogem à cultura da excitação, da novidade, do lugar-comum, mas, ao contrário, exatamente porque aderem a ela. A indústria editorial é a prima prostituída da Literatura, que goza de seu antigo apelo e prestígio na mesma medida em que carece de sua sofisticação e profundidade.
A Literatura, a verdadeira Literatura, ainda segue sendo um artigo reservado aos poucos gostos refinados que sobrevivem à magia de Circe das telas de cinema e TV. Mas esses heróis anônimos não estão mais reunidos, fazendo saraus e compartilhando suas experiências literárias. Estão espalhados pelo mundo, solitários e cercados pelo ambiente hostil de uma massa antiliterária. Precisam cultivar a leitura das obras clássicas e dos novos autores como um hobby privado, mais ou menos sigiloso e tímido, tateando sem orientação num labirinto de estilos e épocas. São poucos, pouquíssimos os que contam com familiares, amigos ou professores que podem fornecer-lhes o caminho seguro da formação literária, que os introduz num universo maravilhoso de cultura que, quanto mais treina a sua imaginação e desperta a sua sensibilidade, tanto mais as torna impacientes e inclementes com as diversões ordinárias. Literatura e cultura de massa, texto e imagem, originalidade e lugar-comum, profundidade e excitação se encontram em conflito e concorrência.
Reflexões sobre Arte, Teoria da Arte, Literatura, Teoria Literária e Crítica Literária.
agosto 18, 2008
A Literatura em Tempos de Cultura de Massa
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Um comentário:
Linda, meus parabéns pela postagem que, além de muito interessante, denota coragem e sensibilidade na leitura de hábitos sociais.
Pude entender com a sua postagem, o quanto ainda somos herdeiros de uma atitude anti-burguesa, que, de fato, na época quando ocorreu, tinha como foco a crítica e a destruição dos privilégios de uma classe que fundamentava uma exploração de uma maioria para benefício de uma minoria.
No entanto, como toda crítica, ela pode ter exagerado em suas proporções, afastando o que havia de ruim e de bom na burguesia.
Vejo que atualmente o cultivo da música e da literatura fica realmente em segundo plano, e é ainda realizado por uma minoria, mas a cultura do imediato, da sensação, muitas vezes nos cega para a importância do cultivo desses outros elementos artísticos.
Aliás, e fazendo uma péssima comparação, é quase como fazer um lanche em alguma rede de fast-food, e não se dar a oportunidade de provar uma culinária regional.
É como se homogeneizar, não para fazer parte de um conjunto restrito de pessoas, mas não se dar sequer a oportunidade de experimentar algo novo, singular.
Não tenho nenhum problema com televisão, cinema e outras manifestações da cultura - nem mesmo com lanches em fast-food -, tenho apenas o receio que, pelo cultivo excessivo do imediato, estejamos nos negando uma experiência mais profunda.
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